sábado, 10 de abril de 2010

Memória da Huestia

(Baseado em lendas asturianas)
Agustín Celis Sánchez, Espanha

Traduzido por Claudio Justo

Vovó nos contava velhas lendas da Santa Compaña e mamãe ria dela e de suas histórias. Papai lhe dizia que não nos assustasse com velhas superstições do povo, que iria transformar em homens medrosos e covardes a mim e a meus irmãos; e que tudo aquilo era mito de velhas desocupadas. Dizia também que o que alguns chamavam de a Huestia e outros A Compaña não existia e que, ainda que que a morte fosse chegar a todos um dia, não iria vir primeiro nos prevenir com sinos e tochas acesas e toda uma procissão de mortos acompanhando a Morte.

Vovó a chamava de Estádia e contava que ia envolta em um hábito negro e não tinha rosto, cheirava à umidade das sepulturas e mostrava sua presença somente a quem fosse levar – e só nesse instante. Porém algumas pessoas especialmente sensíveis poderiam percebê-la por uma brisa úmida que entrava no quarto do moribundo segundos antes de morrer. No entanto a Huestia era conhecida de muitos, inclusive vovó já a havia visto quando jovem, no dia em que morreu seu irmão Juan, e lhe falaram da procissão e até lhe contaram um segredo.

Eu já sei o que é a Huestia, e sei o lugar que cada um ocupa na comitiva; e sei também o lugar que eu ocupo. Conheço diariamente o trabalho de cada noite e onde vai a personagem que nos precede. Sei como ela é e seu cheiro, porque tenho andado ao seu lado muitas vezes cada vez que sirvo de aviso a cada um dos meus.

Vovó viveu tantos anos somente para que soubéssemos da Huestia e nunca duvidássemos de sua existência. Estava destinada a devolver a lembrança à nossa família que a tinha perdido há tanto tempo. Cada vez que havia algum luto por um familiar em nossa casa, vovó rememorava velhas histórias de aparições e sempre, sem exceção, dizia ter visto, na noite anterior, todo o coro dos seus antepassados velando nas redondezas pela alma do moribundo.

Quando vovó morreu ninguém falou da Huestia. E ainda que no ano seguinte a seguiu a tata Manen e depois o tio Luis, ninguém voltou a lembrar do segredo que ela nos contou tantas vezes e que deveria permanecer vivo na nossa família, e lembrado por todos para que algum dia se quebrasse a maldição que rege o destino de toda minha linhagem: que cada mulher da família deve penar o castigo de ver morrer ao menos um dos seus filhos, como lição por uma antiga ofensa de um antepassado muito soberbo.

Eu devia ter avisado aos meus país na noite antes de minha Primeira Comunhão, quando vi vovó no jardim da casa, com todos seus antepassados, velando por ninguém e, no entanto, chorando. Tive medo, então me calei para que ninguém pensasse que estava nervoso pela celebração do dia seguinte. Assim não disse nada do que tinha visto e ninguém pôde saber que minha morte estava destinada a servir de lembranças da velha maldição que ainda pesa sobre as mães de minha família.

Todo o povo celebrou aquele dia junto ao rio com um enorme pic-nic para festejar a Comunhão de todos os meninos. Tinha de tudo e quando ficamos satisfeitos nos metemos na água e começamos a fazer corridas de uma margem à outra para comprovar nossa resistência. Aconteceu na metade do caminho: meus pés esfriaram e fiquei sem forças e parado ali. Os braços não responderam e senti um frio estranho em todo o corpo. Fui afundando pouco a pouco e lá no fundo ela me esperava sem rosto, como sempre a tenho visto, e ainda assim tão acolhedora.

Encontraram-me três dias depois, inchado com uma bola e me enterraram no túmulo da família junto à vovó, a quem acompanho com minha tocha acesa todas as noites, já faz tantos anos, quando fazemos a ronda que avisa ao mundo que alguém vai morrer. Algumas vezes são os meus.

Soube que a filha de minha irmã está doente e que os médicos que a têm visto não sabem o que ela tem. Soube que sua doença não tem remédio. E soube também, por minha avó, que está escrito que nesta noite eu acompanharei a Estadía até o quarto da filha de minha irmã, onde ela a estará cuidando. E está escrito que minha irmã me verá e junto choraremos a perda, enquanto a morte arrebata sua filha na cama sem que ela possa ver. Após isso levarei a menina ao lugar onde todos esperamos.

Espero que minha irmã compreenda!

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