terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Sarjeta

A vista dos pés, um mostrando a sola nua e o outro o calcanhar levantado, dizia claramente que o rapaz corria. Em pé o senhor apertava desolado a face contra as duas mãos, sugerindo um movimento de negação e desespero. Diante do rapaz que corria, apenas a mureta do Ribeirão Arrudas, na parte central da Avenida do Contorno. Ao lado do homem que se desesperava, havia apenas o movimento das pessoas que embarcavam tranqüilamente nos ônibus que chegavam e partiam da rodoviária.
Ao pé do Elevado Castelo Branco, dois policiais, com olhares despreocupados, assistiam inertes à corrida do meliante. Diante deles uma criança suja dormia calmamente, enquanto bêbados dançavam ao som alto que vinha do bar ali na esquina.
Abaixo do menor que dormia, também jogada na sarjeta, pousava revoltada a assinatura do pintor.
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A título de filosofia da composição
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É certo que não existe texto original. Não, pelo menos, em sua essência. Todos os textos que produzimos, ainda que seja aparentemente uma grande novidade, carrega consigo uma série de informações que têm como origem diversos pensamentos de diversos autores. Toda conclusão é fruto de intercruzamentos de idéias que vamos colhendo ao longo de nossas vidas e nossas experiências.
Somos, a todo tempo, influenciados. O texto acima narra uma quadro que pode ou não existir. Embora eu não creia que algum artista melhor que eu tenha tido a idéia de pintá-lo, a imagem narrada retrata uma cena corriqueira de uma região central de Belo Horizonte. Não creiam, no entanto, que se trata de algo novo.
Na verdade já vi dois escritores mais renomados fazer o mesmo. Por coincidência (ou não) ambos portugueses. O primeiro foi Almada Negreiros, com sua "A Taça de Chá", no qual narra a estampa de uma taça de chá. O outro autor é José Saramago, nas páginas inicias do "Evangelho Segundo Jesus Cristo", onde narra a cena da crucificação.
Como podem perceber, nenhum texto é essencialmente inédito ou original. Comigo não seria diferente.

2 comentários:

Mary Justo disse...

Que orgulho eu tenho de vc!!!!!! Beeeeeeeeeeeijos

Líviarbítrio. disse...

Sempre que termino um texto penso nele como sendo uma obra inédita, mas ao tornar a lê-lo percebo o quanto já falei e o quanto já li o mesmo enredo em meus e em outros textos.

Por consequencia acaba desestimulando a arte de escrever. Mas não paro nunca, como dizia Lispector - 'quando não escrevo estou morta'.

;)
Muito bem narrado, ler e imaginar a cena é tão bom quanto apenas pintá-la.
Beijos.